Antes de começar essa viagem
Contos breves são flash do nosso cotidiano, um olhar mais atento para as pequenas coisas que compõem o nosso dia a dia. Esse livro fala de grandes emoções que foram trazidas à tona graças aos pequenos detalhes do nosso viver. Viver é muito mais do que respirar e cumprir tarefas. Viver é viver, é saber que somos todos escritores de uma trama que nos pertence. Vamos escolher grandes finais para os nossos dramas. Finais felizes e possíveis. Viver é tudo isso!
UMA PONTE PARA VOCÊ
Os nossos sonhos são como estradas sinuosas que nos conduzem em direção ao novo, ao desconhecido. Durante a minha infância conheci a força que a imaginação tem sobre a realidade, alterando rotas, dando significação a alguns gestos, superando dores... Nesses momentos o que parece ser o apagar das luzes revela-se como uma nova possibilidade, um recomeço.
Papai era um homem muito inteligente. Um metro e noventa de ternura e uma linda cor de jambo. Amante da leitura e da escrita, um homem à frente do seu tempo. Não tive tempo de conhecer os seus defeitos. Mas o que fazer?
Meu irmão nasceu com a cor de jambo do papai. Minha irmã e eu parecíamos mais pálidas após o nascimento dele. Desgostava-me saber que papai o amaria mais do que a mim devido àquela linda cor que eu não tinha. Disposta a dar um fim à minha angústia, arquitetei um plano para jogar o meu irmãozinho fora, como havia feito com alguns bonecos. Jogar fora significava guardá-lo dentro do guarda roupa, bem lá no fundo, tirando-o de circulação. Mamãe e vovó intuíram os meus intentos e ficaram alerta. Um dia consegui tomar o meu irmãozinho em meus braços e, cuidadosamente, conduzi-o para o guarda roupa dos meus pais. Improvisamente, mamãe apareceu à minha frente e, muito zangada, disse-me de não segurar o meu irmão daquele jeito. Meu irmão era muito gordinho e mantê-lo em meus braços não era uma tarefa fácil. Obediente, abri os braços fitando mamãe enquanto meu irmãozinho estatelava-se no chão.
Papai conversou comigo e a explicação que ele deu-me foi simples: meu irmãozinho havia sido feito à noite. Minha irmã e eu durante o dia. Aquela estória pareceu-me bonita e durante muitos anos acreditei nessa argumentação ressaltando essa diferença com orgulho. Foi assim por muito tempo, suscitando sorrisos e comentários da parte dos adultos. Os anos passaram até que, um dia, as aulas de ciência colocaram fim ao que seria a nossa marca distintiva. Mas naquele então eu já amava demais o meu irmão para rebelar-me contra ele. Descobertas, intrigas, ciúmes... um ensaio para a nossa vida adulta.
Papai dedicava grande parte do seu tempo lendo e escrevendo e um dia revelou-me um grande segredo que mudaria a minha vida para sempre: os livros falam com a gente. Após esse episódio fui apresentada ao mundo das Letras. Diariamente papai repetia-me: esse é o n, esse é o i, esse é o n de novo, esse é o h e esse é o. Eu olhava para aquelas imagens. Quando não conhecemos as letras aqueles símbolos nos dizem muito pouco. Eu sabia, porém, que o n tinha algo a ver com o meu nome. Eu gostava muito dessa associação mesmo sem compreendê-la totalmente.
Uma certa manhã, enquanto bebia o meu copo de leite, pronunciei a palavra ninho. Papai e mamãe olharam-se e logo percebi que eu havia dito algo que eles haviam gostado. Vovó veio em seguida. Os três abraçaram-me, felizes, durante muito tempo.
Papai amava as atividades criativas e, algumas vezes, ele reunia a nossa família para inventarmos novas estórias que nasciam de recortes de revistas e gibis velhos. Foi numa dessas ocasiões que ele falou-nos sobre a ponte que seria construída na nossa cidade, ligando o Rio à Niterói. A rainha Elizabeth havia dado inicio simbólico às obras. Era o ano de 1968. Papai explicou-nos que as pontes unem mundos diferentes, que seria um grande progresso para todos nós poder chegar até Niterói em vinte minutos. Ele prometeu que iríamos conhecer a ponte no dia da inauguração daquela que seria um grande marco nos próximos anos no que diz respeito à engenharia. Fiquei impressionada com aquela estória. Eu entendia muito bem de rainhas e pontes, que sempre apareciam nos enredos dos meus livros e nas estórias que papai costumava contar-me.
Algum tempo depois a doença levou o papai para o Hospital da Lagoa. Esse nome evocava em minha mente uma imagem belíssima. Quem sabe se não tinha uma ponte sob essa lagoa? A ponte... papai deveria voltar logo, tínhamos um encontro marcado.
Numa manhã quente vovó acordou-nos dizendo que o papai não estava mais nesse mundo. A vovó era uma pessoa diferente e as suas premunições eram infalíveis. Indaguei sobre qual mundo ele teria ido. Vovó parecia hipnotizada e não respondeu-nos. Um carro estacionou à nossa porta e mamãe saiu dele acompanhada por amigos e parentes. Corri para dizer à mamãe o que a vovó havia revelado-nos. Mamãe chorava sem parar e logo percebi que o papai havia ido para esse tal de outro mundo mesmo.
4 de março de 1974. A ponte Rio-Niterói estava sendo inaugurada. Ao mesmo tempo papai ia para o tal outro mundo enquanto eu sentia-me terrivelmente só neste.
Após o nosso adeus ao papai, um dos nossos amigos reuniu toda a nossa família e conduziu-nos, num fusca amarelo, pelas estradas do Rio de Janeiro. Vamos conhecer a ponte Rio-Niterói, disse o nosso vizinho. Arregalei os olhos! Iríamos então conhecer a famosa ponte que mudaria a nossa cidade. Ao chegar à ponte admirei a imensidão da quantidade de água e os outros carros que passavam por nós. Pensei na rainha Elizabeth. Pensei no papai. Aquela ponte era realmente mágica e estava unindo mundos.
Às vezes ainda vejo-me naquele fusca. Penso em todos os conceitos que giram em torno das pontes pelo mundo afora. Penso nas pontes que conheci e naquela que aprendi a amar. Penso nas pontes imaginárias e nas pontes que papai conseguiu construir entre o mundo das Letras e o meu coração. Penso nas pontes de concreto e nas inúmeras possibilidades de encontros. Sabe pai, às vezes penso na nossa estória... uma ponte para você.
Contos breves são flash do nosso cotidiano, um olhar mais atento para as pequenas coisas que compõem o nosso dia a dia. Esse livro fala de grandes emoções que foram trazidas à tona graças aos pequenos detalhes do nosso viver. Viver é muito mais do que respirar e cumprir tarefas. Viver é viver, é saber que somos todos escritores de uma trama que nos pertence. Vamos escolher grandes finais para os nossos dramas. Finais felizes e possíveis. Viver é tudo isso!
UMA PONTE PARA VOCÊ
Os nossos sonhos são como estradas sinuosas que nos conduzem em direção ao novo, ao desconhecido. Durante a minha infância conheci a força que a imaginação tem sobre a realidade, alterando rotas, dando significação a alguns gestos, superando dores... Nesses momentos o que parece ser o apagar das luzes revela-se como uma nova possibilidade, um recomeço.
Papai era um homem muito inteligente. Um metro e noventa de ternura e uma linda cor de jambo. Amante da leitura e da escrita, um homem à frente do seu tempo. Não tive tempo de conhecer os seus defeitos. Mas o que fazer?
Meu irmão nasceu com a cor de jambo do papai. Minha irmã e eu parecíamos mais pálidas após o nascimento dele. Desgostava-me saber que papai o amaria mais do que a mim devido àquela linda cor que eu não tinha. Disposta a dar um fim à minha angústia, arquitetei um plano para jogar o meu irmãozinho fora, como havia feito com alguns bonecos. Jogar fora significava guardá-lo dentro do guarda roupa, bem lá no fundo, tirando-o de circulação. Mamãe e vovó intuíram os meus intentos e ficaram alerta. Um dia consegui tomar o meu irmãozinho em meus braços e, cuidadosamente, conduzi-o para o guarda roupa dos meus pais. Improvisamente, mamãe apareceu à minha frente e, muito zangada, disse-me de não segurar o meu irmão daquele jeito. Meu irmão era muito gordinho e mantê-lo em meus braços não era uma tarefa fácil. Obediente, abri os braços fitando mamãe enquanto meu irmãozinho estatelava-se no chão.
Papai conversou comigo e a explicação que ele deu-me foi simples: meu irmãozinho havia sido feito à noite. Minha irmã e eu durante o dia. Aquela estória pareceu-me bonita e durante muitos anos acreditei nessa argumentação ressaltando essa diferença com orgulho. Foi assim por muito tempo, suscitando sorrisos e comentários da parte dos adultos. Os anos passaram até que, um dia, as aulas de ciência colocaram fim ao que seria a nossa marca distintiva. Mas naquele então eu já amava demais o meu irmão para rebelar-me contra ele. Descobertas, intrigas, ciúmes... um ensaio para a nossa vida adulta.
Papai dedicava grande parte do seu tempo lendo e escrevendo e um dia revelou-me um grande segredo que mudaria a minha vida para sempre: os livros falam com a gente. Após esse episódio fui apresentada ao mundo das Letras. Diariamente papai repetia-me: esse é o n, esse é o i, esse é o n de novo, esse é o h e esse é o. Eu olhava para aquelas imagens. Quando não conhecemos as letras aqueles símbolos nos dizem muito pouco. Eu sabia, porém, que o n tinha algo a ver com o meu nome. Eu gostava muito dessa associação mesmo sem compreendê-la totalmente.
Uma certa manhã, enquanto bebia o meu copo de leite, pronunciei a palavra ninho. Papai e mamãe olharam-se e logo percebi que eu havia dito algo que eles haviam gostado. Vovó veio em seguida. Os três abraçaram-me, felizes, durante muito tempo.
Papai amava as atividades criativas e, algumas vezes, ele reunia a nossa família para inventarmos novas estórias que nasciam de recortes de revistas e gibis velhos. Foi numa dessas ocasiões que ele falou-nos sobre a ponte que seria construída na nossa cidade, ligando o Rio à Niterói. A rainha Elizabeth havia dado inicio simbólico às obras. Era o ano de 1968. Papai explicou-nos que as pontes unem mundos diferentes, que seria um grande progresso para todos nós poder chegar até Niterói em vinte minutos. Ele prometeu que iríamos conhecer a ponte no dia da inauguração daquela que seria um grande marco nos próximos anos no que diz respeito à engenharia. Fiquei impressionada com aquela estória. Eu entendia muito bem de rainhas e pontes, que sempre apareciam nos enredos dos meus livros e nas estórias que papai costumava contar-me.
Algum tempo depois a doença levou o papai para o Hospital da Lagoa. Esse nome evocava em minha mente uma imagem belíssima. Quem sabe se não tinha uma ponte sob essa lagoa? A ponte... papai deveria voltar logo, tínhamos um encontro marcado.
Numa manhã quente vovó acordou-nos dizendo que o papai não estava mais nesse mundo. A vovó era uma pessoa diferente e as suas premunições eram infalíveis. Indaguei sobre qual mundo ele teria ido. Vovó parecia hipnotizada e não respondeu-nos. Um carro estacionou à nossa porta e mamãe saiu dele acompanhada por amigos e parentes. Corri para dizer à mamãe o que a vovó havia revelado-nos. Mamãe chorava sem parar e logo percebi que o papai havia ido para esse tal de outro mundo mesmo.
4 de março de 1974. A ponte Rio-Niterói estava sendo inaugurada. Ao mesmo tempo papai ia para o tal outro mundo enquanto eu sentia-me terrivelmente só neste.
Após o nosso adeus ao papai, um dos nossos amigos reuniu toda a nossa família e conduziu-nos, num fusca amarelo, pelas estradas do Rio de Janeiro. Vamos conhecer a ponte Rio-Niterói, disse o nosso vizinho. Arregalei os olhos! Iríamos então conhecer a famosa ponte que mudaria a nossa cidade. Ao chegar à ponte admirei a imensidão da quantidade de água e os outros carros que passavam por nós. Pensei na rainha Elizabeth. Pensei no papai. Aquela ponte era realmente mágica e estava unindo mundos.
Às vezes ainda vejo-me naquele fusca. Penso em todos os conceitos que giram em torno das pontes pelo mundo afora. Penso nas pontes que conheci e naquela que aprendi a amar. Penso nas pontes imaginárias e nas pontes que papai conseguiu construir entre o mundo das Letras e o meu coração. Penso nas pontes de concreto e nas inúmeras possibilidades de encontros. Sabe pai, às vezes penso na nossa estória... uma ponte para você.
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